Por que o IPI não deve incidir na revenda de produtos importados?
A discussão sobre os motivos determinantes para a não incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na mera revenda de produtos importados, muito embora possa parecer simples para alguns, tecnicamente demandaria análise e ponderações um pouco mais extensas que tratadas nesta postagem. Faremos esta abordagem de maneira sucinta e didática, pontuando resumidamente os argumentos atualmente debatidos nos Tribunais.
Nessa linha, é necessário partir da premissa de que a incidência de qualquer tributo legalmente previsto é condicionada à presença de todos os elementos da chamada regra matriz de incidência tributária – RMIT, através da delimitação dos critérios material, espacial, temporal (antecedentes), pessoal e quantitativo (consequentes) encontrados na norma tributária, de acordo com a maior parte da doutrina. Além disso, ainda que se configurem todos eles no caso concreto, a incidência tributária também deve respeitar aos princípios constitucionais norteadores da atividade arrecadatória, dentre eles a isonomia entre os contribuintes e a vedação à dupla tributação sobre um mesmo fato gerador (non bis in idem).
No caso do IPI para mercadorias importadas, as matrizes tributárias debatidas são as previstas no artigo 46, incisos I e II, e 51, inciso I e parágrafo único, todos do Código Tributário Nacional (CTN), que ensejaram o entendimento atualmente adotado pelo Fisco, de que a importação para revenda possui duas regras distintas e, portanto, passível de cobrança em cadeia, irrestritamente. Confira-se o teor dos artigos:
Art. 46. O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador:
I – o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;
II – a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51;
Art. 51. Contribuinte do imposto é:
I – o importador ou quem a lei a ele equiparar; (…)
Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante.
Para a Receita Federal, então, seria possível cobrar o IPI do importador no desembaraço aduaneiro (Art. 46, I, CTN) e na saída da mercadoria do seu estabelecimento (Arts. 46, II c/c 51, I e parágrafo único, CTN).
No entanto, é nessa segunda cobrança que se desvela a inconstitucionalidade, quando cobrado pela simples revenda do produto importado em território nacional.
Em breve síntese, pode-se afirmar isso porque, primeiro, a incidência de uma segunda cobrança do IPI pelo Fisco confere tratamento distinto entre contribuintes que já estariam em iguais condições. O industrial, ao produzir a mercadoria, limita-se ao pagamento do IPI apenas na saída do estabelecimento, ao passo que o importador está submetido a duas incidências distintas, no desembaraço e na revenda, ainda que não realize nenhum beneficiamento nas mercadorias. Com isso, estaria sendo criado um cenário de desigualdade entre eles, infringindo ao disposto no artigo 150, inciso II, da Constituição Federal, que assim prevê:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…) II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
E não apenas em face do argumento acima é que se pode perceber a inconstitucionalidade da exação, pois, o importador, mediante simples revenda do produto desembaraçado, também não desempenha o ponto nuclear da regra matriz de incidência tributária do IPI (critério material), consubstanciado na industrialização de matéria-prima (produto importado), no sentido de modificar sua natureza, finalidade ou aperfeiçoa-la para o consumo. Inclusive, em temática semelhante, o Ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, reconheceu que a cadeia de industrialização de produtos importados se encerra com o desembaraço aduaneiro, na medida em que não haverá nenhum beneficiamento do produto em território nacional pelo importador, conforme voto proferido no Recurso Extraordinário 723.651.
Em vista do apontado acima, sem maiores explicações que demandam o tema, a saída do produto importado do estabelecimento do importador acabaria por determinar a incidência do IPI em razão da mera circulação da mercadoria no País, ou seja, estaria equiparado o fato gerador do IPI em questão ao já previsto para o ICMS, dando azo a sua dupla incidência (bis in idem). Por esse motivo é que também se pode afirmar que a imposição do IPI após o desembaraço aduaneiro deveria ser afastada, por afrontar aos artigos 153, IV, 154, I, e 155, II, da Constituição.
Por fim, caberia ponderar, ainda, que a equiparação do importador ao industrial, da forma como realizada atualmente, ofende ao princípio da reserva legal, tendo em vista que a definição de contribuinte deveria ter sido procedida através de Lei Complementar, em atenção ao que prevê o artigo 146, III, da CF (que demanda um processo de aprovação mais rígido). Todavia, esse nivelamento entre os contribuintes fora idealizado através de Lei Ordinária, mais precisamente nos artigos 13 da Lei nº 11.281/2006 e 4º, inciso I, da Lei nº 4.502/64, desrespeitando ao requisito imposto pelo constituinte e, novamente, sendo percebida, por outro viés, sua inconstitucionalidade.
Estes, resumidamente, são os argumentos basilares para se afirmar que não poderia haver a incidência do IPI na simples revenda de produtos importados, como é atualmente pretendido pela Receita Federal.
Todavia, muito embora se tenha mais de um argumento para defender a não incidência, o Supremo Tribunal Federal, a quem compete proferir o posicionamento final sobre a controvérsia, reconheceu a repercussão geral do tema exclusivamente para análise da violação ao princípio da isonomia (art. 150, II, da CF), mesmo que as demais inconstitucionalidades tenham sido expostas no Recurso condutor (RE 946.648).
Assim, atualmente, resta aguardar o posicionamento do STF, que deveria ter julgado a matéria ao final de 2018, para verificar se será analisada a inconstitucionalidade em todos os seus contornos ou em relação apenas a um dos pontos. Essa pendencia de julgamento não impede, contudo, que os contribuintes ingressem em juízo enquanto o STF não se posiciona, com vistas a resguardar o período de recuperação de valores indevidamente pagos, acaso seja reconhecida a inconstitucionalidade do tributo, tendo em vista uma possível modulação de efeitos da decisão em caso de procedência do pedido.
O autor
RAFAEL SCOTTON
Direito Aduaneiro e InternacionalAdvogado, graduado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba - Faculdade de Direito de Curitiba), graduado em Análise de Sistemas pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), MBA em Contabilidade, Gestão, Planejamento Tributário pela Universidade Positivo (UP), com larga experiência na assessoria e consultoria de empresas nas áreas de direito empresarial e tributário.